quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

EM SEGUNDOS A MINHA VIDA VOLTOU A ABANAR

Ontem vim de urgência para o Porto. Aparentemente, alguns sintomas do meu filho seriam graves. Depois de ter telefonado à médica meti-me no comboio. Em segundos a minha vida voltou a abanar. A virar-se. Ou a revirar-se, não sei bem. O meu coração parecia estrangulado. O meu estômago amarrado. É daqueles momentos em que tudo o resto pode desabar, porque o nosso centro já desabou. Como se nada mais interessasse. Esta é a primeira reacção.

No comboio não apetecia ouvir música, nem ouvir conversas, nem ler, muito menos falar. Fechava os olhos à procura duma conexão, dum eixo, de algo que me puxasse para muito dentro ou para muito fora de mim. Fui lá para o fundo. O fundo do mais fundo do meu peito. Onde afinal havia luz. Havia paz. Fiquei ali. Percebo que nestes momentos não sou capaz de mais nada. E é bom que não seja. Nem de pensar, nem de sentir. Só ficar ali. Não pensar no que pode acontecer, não pensar no que tenho de fazer. Só aceitar. Aceito. Aceito o momento. Aceito a vida. A minha vida. Este momento é assim. Este momento é triste. E eu aceito. Não podia ser de outra maneira. Não adianta pensar que podia ser de outra maneira. Porque não podia. Mais para a frente poderá ser diferente. Mas agora não. Agora é para passar por isto. E passo. Com os olhos fechados sinto a paz da aceitação. E em paz, entrego. Entrego pela enésima vez. Será como tiver que ser. Eu só tenho que fazer a minha parte. E faço. Tento fazer.

Chego ao Porto. Sinto uma enorme calma quando estou com o meu filho.

Hoje chegamos ao IPO às 10.15h. Tinha ficado de lá estar entre as 10,30h e as 11h.

Sentamo-nos na salinha de espera. Atrás de mim um menino de voz muito suave dizia: " Não percebo porque é que quando respiro me dói tanto o peito..." As lágrimas saltaram-me logo. E a partir daí praticamente não pararam. Passado um bocado tentei olhar para trás disfarçadamente para ver a cara dele, devia ter uns 10 anos e estava de máscara e capuz pela cabeça. Pisquei-lhe o olho e ele piscou-me de volta. Que querido...Tão querido que depois o vi a fazer festinhas no cabelo da mãe. Acho que foi o primeiro menino que vi a fazer isso por ali.

O tempo ia passando. Meninos iam entrando e saindo. Sentou-me o Gonçalo de uns 3 anos, ao meu lado. Ou melhor, sentou-se a mãe porque ele ainda estava na cadeirinha de rodas. Completamente careca. A mãe insistia que ele desse uma trinca na banana. Ele não queria, chorava. Lamentei que mãe insistisse, porque se estava mesmo a ver o que ia acontecer. Deu duas trincas com muito custo. E vomitou. E a mãe dizia que ele ou não come, ou se come vomita. Conheço isso. Às tantas, ele já aconchegado numa manta pedia: Quero soro! E mãe disse que ele pede soro porque é a única coisa que não vomita...E que antes de vir já tinha vomitado três ou quatro vezes em casa. E as lágrimas continuavam a saltar-me.

Entrou uma jovenzinha. A primeira com cabelo comprido, que eu via ali. Estranhei. Mas era uma cabeleira, com corte moderno. A seguir entra outra rapariguinha. Também com cabeleira, mas trazia um capuz cinzento por cima, de um poncho ao estilo capuchinho vermelho. A pele também estava acinzentada. De máscara posta, e olhos assustados. Mais lágrimas a saltarem-me.

Uma pequenina de uns dois aninhos estava sempre a entrar e a sair da enfermaria com os pais. Devia estar a fazer algum tratamento que implicasse ser injectada de x em x tempo. Quem tinha olhos de assustada era a mãe.

De pé, encostadas à parede algumas mães conversavam enquanto bebiam o café que as voluntárias distribuem. Uma delas dizia a rir e a tentar fazer as outras rir, que já estava a pensar no sexo que ia fazer logo à noite, porque é o que se leva desta vida. Que não se pode estar a pensar em coisas tristes.

E eu a pensar que por isso tenho tão pouco a falar com grande parte destas mães, que falam de tudo menos do que realmente importa. Que falam das enfermeiras...e dos médicos...porque este é assim e aquela é assado...Nunca jamais em tempo algum eu comentei o que quer que fosse de alguém que lá trabalhe. Lembro-me sim, de um dia ter pensado: "Como é que esta enfermeira entra neste quarto com meninos neste estado com este tom agressivo? Quem é que ela pensa que é?" Para no mesmo minuto pensar: "Então é melhor que penses primeiro quem és tu para atraíres estares nesta situação, ainda por cima com uma enfermeira agressiva. Fica lá triste, em vez de ficares irritada." E fiquei. Fiquei triste por todo o desconforto da situação. E tentei perceber se depois de ficar triste em vez de irritada ainda tinha alguma coisa para dizer à enfermeira. Já não não tinha. E ela já estava doce.

De um modo geral eu tenho uma tal gratidão por todos os que assistiram o meu filho que na verdade gosto de todos. Mesmo que não sinta empatia, eu gosto.

E por isso me afastei sempre das outras mães. Porque não tinha o que conversar. O que criticar. E também não as queria criticar a elas por criticarem. Elas estavam a fazer o melhor que podiam e sabiam e eu também. Só estavamos era em vibrações diferentes. Às vezes pensava se em vez de me afastar não lhes podia dizer alguma coisa que as ajudasse. Mas imediatamente me dava conta que estava ali para me mudar a mim e não para mudar ou ajudar os outros. E a propósito das outras mães, hoje lembrei-me de uma vez a Alexandra me ter dito, quando o Zé Miguel estava internado, que eu era muito corajosa. E eu ter respondido: Mas ali todas as mães são corajosas. E a Alexandra retorquiu: Sim, mas não têm a tua consciência.

As horas foram passando e daquelas 40 ou 50 pessoas que lá estavam,entre pais e filhos, muitas foram sendo atendidas e iam embora. O Zé Miguel já desesperava e dizia que ia embora também. Estava em jejum e já eram quase 15h. Apesar de hoje não ter consulta marcada já aconteceu noutras ocasiões ser atendido a esta hora. Impaciente mas meigo, nunca deixou de me dar abraços, e fazer festinhas.

Atrás de mim uma mãe contava que o filho não parava de sangrar e por isso teve que chamar a ambulância para vir a correr.

Até que ficamos nós, uma menina de uns 12 anos, muito magrinha de cadeira de rodas, que acabou há poucos dias os tratamentos, com a mãe, e uma senhora que parecia ser indiana com o filho que tinha o lado esquerdo da cara como uma bola.

A senhora indiana dizia que ainda não tinha feito lá um reclame porque era a primeira vez que lá ia mas que não se admitia estar à espera de será tendida até aquela hora. A outra senhora dizia que já tinha feito muitos reclames (reclamações com espectáculo, foi assim que entendi o reclame a que se referiam) mas que não adiantava nada. Que o filho tinha aquele abcesso há 7 meses e não sabia o que era, E que agora tinham encaminhado para ali. E a mãe da menina dizia que aquilo não era abcesso nenhum, que tinha que ser outra coisa, e que pedia desculpa por estar a dizer aquilo, mas que quando se era mandado para este lugar, se estava logo a ver o que era. Enfim. Já não basta o que basta para ainda se estar a ouvir um diagnóstico de uma pessoa que apesar de tudo é leiga.

Finalmente o Zé Miguel foi chamado. A médica quis falar com ele a sós. Achei bem. Até ia propôr isso mesmo. Depois falou comigo. Que afinal lhe parece que ele está bem. Que se os sintomas fossem consequência de neoplasia ele não estaria com aquele aspecto. E que confia que o resultado das análises vai confirmar isso e que basta fazer outros exames no final do mês.

Relaxei. E já lhe pude dizer como ela está bonita. Como o cabelo dela ficou forte depois da quimio.

E por falar em médicos que que sofrem da mesma doença, hoje também vi a Dra. Susana, a psicóloga que atendeu o Zé duas vezes (não atendeu mais, nem ela nem nenhuma outra porque ele não queria, dizia que a psicóloga dele era a mãe) e que teve um bebé que aos três meses foi internado para fazer quimio.

Saímos já às quatro da tarde. Às sete voltamos lá para levantar justificação para a escola do Zé, de que nos tínhamos esquecido. Já estava noite. E a última vez que tinha chegado ao IPO à noite, foi às 5h da manhã. Quando ele ficava com febre e tínhamos que ir disparados para lá, porque eram infecções e pior do que chegar a essa hora era sabermos que ia ficar em isolamento. Aconteceu umas três vezes chegar lá com ele de madrugada. Sozinhos. Eu e ele. Deixava-o à porta com a mala enquanto ia estacionar o carro. Corredores e elevador em silêncio. Quase tudo escuro. Só as enfermeiras que o atendiam e começavam a fazer a recolha de sangue para análise é que estavam acordadas. Depois dos primeiros exames feitos é que íamos para o quarto. Tempos difíceis.

Hoje são outros tempos.

13 comentários:

Lurdes JC disse...

Amiga, li com grande emoção este teu texto. Percebe se profundamente o quanto tu és uma pessoa muito especial, uma mae muito especial...
Obrigada por partilhares e transmitires esta experiencia tao especial, com palavras simples .
Um bj Gd amiga para tudo.
Lurdes JC

Essencialma disse...

Amiga, tantas emoções num só texto!!!
Admiro-te muito....Essa coragem....A entrega...mas sobretudo a coragem!!!
Há muitos momentos que temos de ir lá vivenciar outra vez para limpar, para harmonizar não é?! Não sei se é o caso...mas sinto isso!!
Como se tivéssemos de literalmente regredir ás emoções, para fazer o resgate, de mais um pedaço da nossa essência, que deixá-mos lá no caminho!!!

Beijo do tamanho do mundo!!! Obrigada, muito mesmo, pela partilha!

Olinda Cristina disse...

Obrigada Lurdes, obrigada! Um beijo grande para ti que és uma amiga tão, tão, especial!

Olinda Cristina disse...

Sabes, Cláudia, é sobretudo a melhor forma de nos mantermos frágeis: que nada está garantido.
Beijo enorme para ti e eu é que agradeço!

Essencialma disse...

Pois é...Meus Deus!!
Ás vezes acho que não tenho coragem para tanto....
Mas depois lá vem, as escolhas, o compromisso e passa...

Mas essa ideia de fragilidade constante ainda é muito difícil para mim...
O que vale é que tenho grandes exemplos para observar, para ver se não me perco....

Bj

Anónimo disse...

Talvez seja estranho, mas o facto de ler o que escreve, ver como vivencia e transmite as suas experiências, tem-me feito quer ser melhor, não julgar e principalmente, tenta aceitar e relativizar algumas situações dolorosas.
Obrigada.

Lurdes JC disse...

Amiga, ontem ao ler o teu texto, senti que tinha que comentar... Tu sabes o quanto para mim é dificil comentar um tipo de texto,este é um deles. De repente foi me mostrada a razão... A fuga da propria fuga, porque nao aceito a minha fragilizaçao nestas situações. Quero ser forte, e sendo forte, nao sinto, nao comento. Arrastada e nao me deixando iludir pelo medo, voltei a comentar. Desculpa mas tinha que o fazer. Ontem escrevia apagava e o mais estranho adormeci a escrever. Incrivel... O nosso ego é tramado, o meu ego é do tamanho do mundo, quando lhe dá jeito... ainda para mais tu que és uma amiga incrivel... Que a maior alegria que sinto é ler e comentar estas tuas experiências de vida. O teu livro é uma benção incrivel na minha mesa de cabeceira... Enriqueceu tanto a minha vida... Pois recorro a ele frequentemente... Na verdade nem preciso, porque conheço o tao bem.
Obrigada por dares tudo o que tens a quem te visita aqui... Tudo... Partilhas alegrias, tristezas, etc. Se tudo fosse garantido nunca nos fragilizavamos... Não é? Como li no comentário que fizeste à claudia.
Escreves, comentas, aprende-se a crescer espiritualmente.
Um bj muito Gd amiga e estou incondicionalmente aqui e onde for necessário.
Lurdes Jóia

Sara disse...

Bem sempre que falamos ou se fala sobre esses tempos difíceis nem sei o k sentir! Só te posso dizer que vos amo e que estarei sempre aqui!!!!
Raramente choro mas sabes que este assunto mexe comigo!
Aquele beijo cheio de carinho,
Sara

Essencialma disse...

Olá outra vez!!
Quis só vir-te contar uma coisa, por causa da tua resposta ontem...

Hoje tirei uma mensagem do livro, para falar do que eu estava a sentir ontem...
E que depois pelo teu texto percebi que também era um dia assim...

Adivinhas o que saíu???

Fragilização....
Realmente...
Não sei se alguma vez, me tinha saido, mas sei que percebi melhor...
E que continuo em frente, porque este é o meu caminho!!!
Obrigada a ti!!!
Bjo

Olinda Cristina disse...

Obrigada "anónimo". Aquilo que me conta é muito gratificante. Acho que nos podemos ajudar todos uns aos outros. Na verdade, estamos todos no mesmo barco, e é lindo partilharmos as nossas descobertas. Grande abraço.

Olinda Cristina disse...

Lurdes, que grande tomada de consciência! Como ainda agora disse, estamos todos a aprender. ou melhor, a relembrar o que já sabemos. tb estou aqui incondicionalmente para ti. tenho tanto a agradecer! beijo enorme!

Olinda Cristina disse...

Sara, minha prima que eu adoro, obrigada! Ainda bem que choraste, não por ser este assunto, mas porque chorar lava a alma e torna-nos mais leves. Beijo grande e obrigada por seres a prima de todas as horas!

Olinda Cristina disse...

Cláudia, as mensagens do Livro da Luz são sempre de assertividade impressionante! Beijo grande minha amiga!