terça-feira, 26 de março de 2013

A CHUVA DE MARIZA E A MINHA AVÓ BERTINA

Ontem, dia 25 de Março de 2013, estive cerca de 3h na Fnac a ler, e ao meu lado, num plasma estava a passar um concerto da Mariza, e ao fim desse tempo e depois de ter ouvido a música "Chuva" ininterruptamente, interroguei-me por que é que estaria a ouvir aquela música com tanta insistência. Lembrei-me da minha Avó Bertina, por causa deste vídeo que fiz com fotos dela e que tem a música de fundo. Assim que saí da Fnac a minha amiga Sónia Couto publicou a mesma música no meu mural do Facebook, sem ela própria saber porquê. Sá sabe que durante todo o dia a música não lhe saíu da cabeça.

Por isso, volto a publicar o texto que escrevi aqui, no dia 25 de Abril de 2011, sobre a minha Avó.





Hoje.

Deitei-me no jardim ao sol. Comecei a meditar. Sem que eu contasse, senti a presença da minha Avó Albertina. Avó Bertina, como eu lhe chamava. A mãe do meu Pai, Mário. Ando há muito tempo para escrever um texto sobre a minha Avó. Ontem, quando li um comentário da Sílvia sobre a Avó dela, senti que estava a chegar o dia de o escrever. Não pensei que fosse hoje. Que engraçado...agora reparo que é o dia da Liberdade…

Foi a terceira vez que a minha Avó me contactou, desde que partiu há dezoito anos. Sempre de uma forma inequívoca. Sempre senti que ela ao longo destes anos esteve atenta. Sempre. Mas também sempre evitei qualquer tipo de contacto, para não perturbar. Acho que exagerei no meu cuidado. E hoje tive outro choque, como tive das duas vezes anteriores. Tanta Luz…

Um dos motivos porque adiava a redacção do texto era porque achava que tinha que perguntar alguns pormenores ao meu pai, algumas datas. Mas afinal, não é para perguntar nada a ninguém. É só para escrever o que me ficou gravado na memória. Só isso interessa. Só isso é a marca dela em mim.

A minha Avó sempre foi uma pessoa diferente. À frente, para o seu tempo. Casou aos dezanove ou vinte anos com um homem vinte e três anos mais velho do que ela e divorciado. O meu Avó Molar, combatente da I Guerra Mundial. Músico nas horas livres. Viveram em Lisboa e Leiria, numa rua que se chamava Direita e que ela me contava que era a mais torta que já viu...Tiveram oito filhos. Dois morreram bebés, a Elsa e o Henrique.

Os dois mais velhos, quando tinham catorze e quinze anos, foram mandados pelo meu Avô para junto de irmãos dele, um para Angola, o Orlando, e o outro para o Brasil, o Osvaldo. O meu Avô acreditava que lá eles teriam melhores oportunidades de vida. O Osvaldo não queria ir de maneira nenhuma. E nunca mais voltou, nunca mais cá veio. A minha Avó nunca mais viu aquele filho. E como num gesto premonitório, no dia da partida deles vestiu de preto integral, que nunca mais retirou até ao fim da vida dela. Nunca vi a minha Avó que não fosse toda vestida de preto. O cabelo curto branco neve…

Há tempos descobri os meus primos do Brasil, pelo Facebook...foi uma emoção tão grande...e chorei de imaginar qual seria a alegria da minha Avó de poder falar com eles pelo computador...vê-los...

O cabelo branco...com que ela me deixava brincar…Desde pequenina que eu e o meu irmão ficávamos a dormir em casa destes avós ao sábado à noite, dia de os meus pais saírem com os amigos e irem ao cinema. E quando a minha Avó, à noite, estava sentada no sofá deixava-me fazer-lhe penteados, tirava-lhe os óculos e fazia-lhe tótós..ripava-lhe o cabelo todo, punha-o todo em pé, punha ganchos e elásticos…ela sempre com os olhos fechados, com a maior paciência do mundo, aguardava que eu me cansasse…Mostrava-lhe a figura dela ao espelho e ela ria-se...Dormia sempre com ela. Ela tinha um quarto só dela. Sempre com uma lamparina acesa à Santa Rita e a Nossa Senhora. Ao longo da vida foi oferecendo quase todo o seu ouro à Santa Rita, de quem era devota. (Quando fui para o Colégio de Ermesinde entrava muitas vezes na Igreja, só para ficar ali sentada. E sentia uma simpatia especial pela Santa Rita. À frente de cuja imagem me ajoelhava. Sem saber porquê. E por coisa nenhuma.) E quando nos deitávamos ela contava histórias e anedotas. E ríamos, ríamos…Na manhã de Domingo, o pequeno almoço era um ritual...para mim regueifa com mateiga que ela punha no forno para derreter, e uma grande chávena com leite e café muito fraquinho. Para o meu irmão fazia diferente, torradas com o pão bijou, que ele gostava mais.

Tinha uma paixão pela leitura. Que a fazia esconder-se no quarto de banho a ler. E também lia enquanto cozinhava (fazia os melhores assados do mundo, em forno de lenha). Um dia, em tempo de férias da escola, de manhã ligou para minha casa e disse à minha mãe para não sairmos porque íamos ter uma surpresa. Eu e a minha mãe depreendemos que uma surpresa só poderia ser a visita de um dos tios que estavam fora…arranjamo-nos a correr e demos um jeito à casa com toda a pressa. Tocam à campainha: afinal era a Maria Baptista com um cesto onde trazia um belíssimo empadão…porque eu adorava empadão…

A Maria Baptista trabalhou em casa da minha Avó durante toda a vida. Morreu há meses. Fazia parte da casa. Apesar de analfabeta, era muitíssimo educada, e tratava a inquilina da minha Avó, uma senhora francesa, por Senhora Dona Madame….Essa senhora era casada com um senhor sobredotado, que se entretinha a mostrar-nos jogos de quebra-cabeças e a pedir-nos que lhe colocássemos problemas e contas de difícil solução, aos quais ele respondia em segundos, fazendo as contas de cabeça...Dava um nó na minha cabeça e eu até evitava o senhor… Também tem netos sobredotados. Um é marido de uma amiga minha.

A casa da minha Avó era peculiar: um grande terreno com construções terreiras a toda a volta. Uma parte era a casa de habitação, outra era o atelier da minha Avó, onde ela teve tinturaria e máquinas de forrar botões…Outra, a casa de ferramentas do meu Avô. E a casa da lenha. E as outras onde estavam os coelhos. E o lago com patos. E muitas flores e horta. E videiras. Videiras a toda a volta. O dia das vindimas era sempre muito alegre embora chovesse sempre. Quando alguém queria saber se vinha chuva perguntava à minha Avó para que dia é que ela tinha marcado a vindima. E no dia da vindima os meus tios passavam o dia a perguntar: “Ouvesi-a?”…Ficavamos todos molhados mas não parávamos de rir o dia todo. E a feijoada ao almoço era sagrada.

Mas a minha Avó era sobretudo conhecida por dar injecções. Vinha gente de todo o lado. Lembro-me tão, tão bem, do cheiro na cozinha das caixinhas metálicas, com as seringas de vidro dentro, ao lume a ferverem…do cheiro a alcool…dava-me as seringas velhas para eu dar injecções às minhas bonecas de corpo de esponja...o meu chorão, coitado, levava injecções até ficar encharcadíssimo...

Havia de ser a minha Avó a dar-me as injecções durante meses, quando eu tinha seis anos e tive uma infecção pulmonar, a "prima infecção". Eu que sou avessa a agulhas e quase desmaio quando faço análises.

A minha Avó fazia esse trabalho mais com o intuito de ajudar os outros, porque não havia por aqui mais ninguém que as desse. E hoje as suas duas únicas filhas, fazem um trabalho incrível a esse nível. A Tia Adriana com os animais. Anda sempre a recolher e a tratar dos animais arranjando quem os adopte. Só em casa dela tem uma legião.E a Tia Olga que montou com o marido, na casa deles, um posto de abastecimento de mantimentos para as pessoas que não têm meios próprios para se sustentar.

Voltando ao gosto pela leitura. Houve um altura que o meu Tio mais novo, o Alberto, comprava vários livros policiais todas as semanas. Então trazia caixas e caixas de livros para casa da minha Avó que ela dividia comigo, e depois trocávamos. As duas gostavamos de devorar livros.

A minha Avó também gostava de escrever…e escrevia longas cartas para os dois filhos que estavam longe…e para as mulheres deles…e para os filhos deles…Escrevia, escrevia, e no fim colocava as vírgulas todas seguidas , e dizia: "agora coloquem-nas onde acharem melhor"…Era tão única a minha Avó…

Foi a primeira mulher a andar de mota e de calções aqui em Rebordosa. O meu Avô era esciturário e a minha Avó ia levar-lhe o almoço, de mota. E para isso tinha os calções. Se conhecessem Rebordosa, iam ter uma ideia de quanto avant-garde isso era há 60 ou 70 anos atrás. Ou melhor, para terem uma ideia, ainda nos dias de hoje isso não é muito comum…foram poucas as vezes em que vi aqui alguma mulher a andar de mota…a não ser a minha prima Pinita (que é minha prima pelo lado da minha mãe) e que é outra vanguardista…

A minha Avó viveu de luto. De desgosto em desgosto. No fim da vida sentia-se extremamente só. Mas não saía da casa dela de maneira nenhuma. Teve sempre a tensão altíssima, apesar de comer tudo, absolutamente tudo, sem sal e de tomar medicação. Herdei isso e outras coisas dela. Morreu de ataque cardíaco. Fulminante. Não resistiu ao último desgosto. Desde um dos primeiros, estava ela com os filhos pequenos, na sala de espera de um consultório médico, e duas senhoras que não sabiam quem ela era, fizeram um comentário, de uma situação que ela desconhecia e que lhe dizia respeito, e logo ali, ela caiu desmaiada com o impacto do que ouviu.

Nunca mais foi poupada pela Vida. No entanto, foi a pessoa mais terna e querida que eu conheci.

O seu funeral foi dos maiores jamais vistos em Rebordosa. Ela dizia sempre que não tinha medo da morte. E que gostava de morrer num dia de sol e com muitas violetas.
E estava sol e teve muitas e muitas violetas. E flores até perder de vista. E quando me apareceu a primeira vez, depois de partir, há um ano atrás, trazia um ramo de violetas na mão...

Minha querida, querida, Avó Bertina…

Como eu a amo….

E como fico feliz e emocionada quando agora a vejo em Luz…só Luz…







(Nota do dia de hoje, 26 de Março de 2013: Há umas semanas atrás a minha Mãe, que adorava a minha Avó e tinha uma relação com ela de mãe/filha, contou-me que tinha muita pena de ter deitado fora um boião cheio de chupetas cor de rosa e azuis. Quando eu e o meu irmão, ainda muito pequeninos íamos para casa da minha Avo ela dava a cada um de nós uma chupeta, a mim cor de rosa, e ao meu irmão azul. Quando chegavamos a casa a minha Mãe guardava-as no tal boião, porque tentava que nós não usássemos chupetas. Mas quando voltavamos para casa da minha Avó a primeira coisa que ela fazia era ir comprar umas novas. E assim se encheu um boião de chupetas cor de rosa e azuis.)


(Outra nota de hoje, 26 de Março de 2013, é que este texto é até hoje, o terceiro texto mais lido de sempre deste blog, depois do texto sobre o email que o meu filho me enviou- que esteve sempre em primeiro lugar- e do texto sobre o meu livro - em segundo lugar.)


4 comentários:

Miguel Amaral disse...

É o amor verdadeiro, nada acontece por acaso, não existem coincidências, estamos todos ligados, depois existem os sinais, que servem para validar mo que sentimos.

A minha avó faleceu com 96 anos, fez agora 1 ano em 15 de março, estive presente no seu último suspiro, de alguma maneira sabia que ia estar presente nesse momento, pois tive sempre um sonho em que a a morte dela me tocava de alguma forma.

As tuas palavras sobre a tua avó, fazem todo o sentido para mim...

Beijinho Cris e muito amor!

Pedro Quitério disse...

Olá Olinda....
Hoje não resisti a comentar, eu que tenho andado afastado faz tempo...mas todos os dias venho aqui em busca de novos textos e de novas histórias.
Este texto e o outro que eu também já li, são carregados de amor, do amor de quem já teve avós assim. Sim, eu sei bem o que é ter avós assim..
E também tenho muitas saudades delas, das duas.
É curioso como as semelhanças entre nós são tantas, não das chuchas que penso que nunca tive dessas coisas, heheheh, mas em muitas outras. Uma delas era a capacidade de dar e ajudar. Era infinita. Partiram de repente... sem oportunidade para despedidas.
Uma delas era a melhor amiga dos vizinhos, não dava injecções mas curava...
A outra era a melhor cozinheira do mundo...
Beijinho
Pedro

Olinda Cristina disse...

Pedro!!!!!!!!!! Que surpresa tão boa! Estou muito feliz por te ver por aqui :))) E muito feliz também pela tua experiência com as tuas Avós. Um beijinho e abraço sentido!

Olinda Cristina disse...

Muitos beijinho e muito amor para ti também amigo Miguel!!!! Sou uma felizarda com as vossas presenças e partilha de experiências! Obrigada e mais um grande abraço!