sábado, 19 de março de 2011

COMBOIO 3/ ÁFRICA - mais episódios em directo (19.03.2011)

Só por Amor se deixa Oeiras num dia como o de hoje…e se vai para Rebordosa…Só por Amor ao meu filho lindo…Uma praia e sol também lindos, rivalizam com ele…mas ele é muito mais bonito e ganha sempre…Bem o tentei convencer a vir cá este fim de semana …festival magnífico à porta de casa e tudo…mas nada…acho que dentro da cabeça dele foram o Projecto e Oeiras que lhe “tiraram” a mãe…

Surpresa: estava no café da estação de santa Apolónia a tomar o pequeno almoço e a pensar - Hoje vou dormir na viagem para compensar as 4 horas de sono desta noite e nem vou pensar em escrever…também é Sábado de manhã, costuma ser tudo tão calminho que nem vai acontecer nada para escrever…
Estou neste pensamento quando surge à minha frenta a minha amiga Laura Moreno. Comecei por atendê-la no meu trabalho e tornámo-nos amigas. Até é minha amiga no FB. É de Lisboa e vai para o Pombal. Vai lá ver uma gata (a Kizumba) que deu para adopção depois de a ter encontrado. Vai lá ver como ela está e dar-lhe colinho. A Laura vai muitas vezes a Moçambique e não podia ficar com ela por causa dos períodos em que está ausente. Comparamos os bilhetes: mesma carruagem. O meu lugar 32. O dela 28. Ainda por cima o meu é daqueles lugares que detesto: lugar de 4 pessoas. Não tinha onde colocar o computador. Ela oferece-se logo para trocar comigo. Agora chegamos à estação do Oriente. Vamos ver se ficam lugares vagos para nos podermos juntar. Mas isto está muito cheio… Não vejo jeitos…e há bocado já me ri…uma senhora, forte, estava a instalar-se com a neta nos tais lugares de 4, e chegou o marido, igualmente forte, cabelo branco, bigode branco e comprido com grandes sacos…ela, muito despachada pede muito educadamente a outro passageiro se a ajuda a confirmar que está estava no lugar certo, mas afinal o lugar dela era outro…e ela chama o marido…”anda lá despacha-te…temos que mudar de lugar…pega nos saquinhos e vai à minha frente rápido…antes que isto comece a andar”…chega ao lugar dela, e manda-o pôr os sacos duma determinada forma que ele não põe…”Arre que este homem é teimoso, porra!!!!!”

Entretanto a Laura veio ter comigo, ao meu lugar, e a senhora ao meu lado percebeu que somos amigas e ofereceu-se para trocar de lugar com a Laura. Agora a Laura está ao meu lado.
A Laura nasceu e viveu em Moçambique até aos 21 anos. Depois esteve 32 anos sem lá voltar. E é lá que se sente em casa.
Falamos da relação com os animais. Conta que até ter tido a primeira gata, para ela ver um animal ou uma pedra era a mesma coisa.
A Laura é pintora e escultora. Costuma ir a Moçambique fazer trabalho de voluntariado ligada a uma pequena ONG (VIDA) ensinar a técnica japonesa Shibori Batik, para tingerem tecidos com folhas, raízes e cascas de àrvores . Na última vez, quando reparou, as mulheres estavam a tentar tirar folhas das árvores que estavam cheias de escorpiões . Laura não as deixou ir lá mas um colega dela, também artista plástico, estava a querer obrigá-las a irem buscar as folhas à tal árvore, mas ele não ia, o corajoso…
E vai-me contando histórias...como um dia em que não se atreveu a entrar num chapa (camioneta) super lotado porque ia correr o risco de vir com um braço e perna de fora e resolveu ir a pé. Encontrou duas mulheres a vender fruta, e pediu-lhes para lhes tirar fotos, (conta que tem que se falar de uma maneira muito directa, não se pode por exemplo, dizer “gostaria”, que isso é impensável) mas então, uma das mulheres, transformou-se logo para a foto, tal qual uma modelo, puxou o decote para baixo, colocou-se de lado e abriu um grande sorriso…a intenção da Laura de tirar uma foto o mais natural possível ficou logo defraudadada com esta pose…mas achou muita piada à alegria que lhes proporcionou só por lhes ter tirado fotos.

Ai meu Deus …estou aqui tão entretida com a Laura, e a escrever o que e ela me vai contando que nem estava a ouvir a tal senhora forte…lá atrás ela vai a dizer muito alto “tu não me chateies, tu não me chateies outra vez…”…não sei se ela está a falar para a neta ou para o marido…

A Laura continua a contar-me episódios de Moçambique. E que o o Daniel é um informático da ONG mas que gosta de a ajudar. E que também organiza um coro local. E que um dia estavam todos muto entretidos a tingir...em silêncio total e uma das mulheres começa a cantar… juntam-se as vozes das outras mulheres E depois a do Daniel. A Laura disse que sentiu qualquer coisa parecida com um choque. Permaneceu em silêncio e sentiu que aquele momento era de paz e de dádiva. E questionou-se como é que pessoas com tão pouco têm tanto para dar…

Estamos tão entretidas que nem sabemos se já passamos Pombal…ai meu Deus!...

Fala na Laurinda, mãe de muitos filhos, e que ainda ficou com 4 da vizinha que morreu de sida. Sempre que se pára o trabalho para dar de mamar aos bebés é por muito tempo…pára tudo. E lá fica o Batik a meio. E os filhos estão sempre com elas.

Outra coisa é que não se pode dizer que uma pessoa é negra. Nem que é preta. Porque eles ficam foribundos. Uma vez ia entrar na entrar na zona das prostitutas sem saber, e uma mulher não deixou passar. Ia à procura do Sr. Belarmino, costureiro. Quando contou esse episódio e se referiu a essa mulher como uma preta a Dirce deixou de gostar dela. Então Dirce, como é que eu hei-de dizer? Dizes: uma mulher. E olha lá como é que se sabe se é preta, branca ou amarela? Dizes que é uma mulher, e aqui é sempre preta.

Foi de avioneta para a ilha de Mazaruto, onde uma amiga tem duas casas. Na praia do Tofinho. Sentadas na sala viam passar baleias com bandos de golfinhoa à frente. Lá chamam às baleias vacas do mar. Resolveram ir já não sei para onde, viram um chapa novo em folha e sentaram-se nos 2 lugares da frente. Estiveram lá 2 horas sem o chapa arrancar. Viam as pessoas a entrar e a sair outra vez. E o chapa continuava parado. Porque afinal só podia arrancar quando todos os lugares estivessem cheios. E as pessoas que entravam viam outros chapas quase cheios, saíam e iam para aquele… O motorista só dizia: Ai minha mãe, minha mãe!... num desalento profundo…finalmente arrancaram e depois de 50 km de estrada com crateras em que cabiam 2 e 3 pneus, encontraram uma tabuleta: Trópico de Capricórnio! Elas fizeram uma festa e o motorista ficou muito vaidoso e cheio de felicidade com a felicidade delas embora parecesse que não sabia o significado da tabuleta.

Apanharam um barquinho para a Ilha de Magaruque, uma ilha tão asseada que nem fumar se pode. Estava a Laura no tal barquinho quando ercebe uma sms da filha: Ó Mãe, onde é que estás? Estou no meio do oceano Índico. Começou uma tempestade e dentro daquela casquinha de noz a Laura pensou que estavam perto do Juízo Final…

Nesse barquinho ainda foram buscar uns ingleses que tinham vendido tudo o que tinham para fazer um ano de sabat pela costa maçambicana. Uma das raparigas tinha o cabelo todo em rastas, cor de rosa clarinho.
Foi nessa ilha que a Laura recebeu a “Dádiva das Conchas”. Que lá não se podem apanhar nem vender. Uma rapariga pobre tentou vender à Laura, que lhe respondeu: Eu não tenho nada para te dar mas tu és muito bonita. A rapariga foi buscar as conchas e ofereceu-as à Laura. Só pelas palavras dela. E as conchas para vender eram tudo o que a rapariga tinha…

Diz-me a Laura: E fala-se em evolução…Quer dizer, a evolução tem muito que se lhe diga…

A Laura ainda conta mais um episódio em que ia cheia de medo dentro de uma avioneta no meio da tempestade e a amiga tentava acalmá-la falando-lhe em questões técnicas: estás a ver aquela nuvem? A nuvem está a puxar para cima e por isso o avião tem que puxar para baixo…Não quero saber de nada disso..ai ai ai ai ai…

Chegamos ao Pombal. A Laura sai e entra uma senhora que se senta ao meu lado.

No banco ao meu lado mas do outro lado do corredor, vai uma senhora muito compenetrada a descascar a sua maçãzinha com um pequeno canivete… reparo agora que vai tudo muito sossegado… a senhora que sentou ao meu lado é que vai cheia de medo de não conseguir sair em Coimbra…está traumatizada porque uma vez não conseguiu abrir a porta para sair em Caxarias e só saiu no Entroncamento…acha que foi por causa dos nervos…tentou abrir a porta antes do comboio parar e bufar…e ela não abriu mais…agora vai a fazer a conta aos minutos que faltam para sair...acho que vou arrumar o computador porque é natural que ela vá ficar muito nervosa e leve tudo à frente, já volto.

Dou-lhe uma breve expilcação sobre comboios, onde está afixado o número da carruagem, etc. e empenho-me para a tranquilizar, garanto-lhe que ela não vai parar ao Porto, nem que vá eu acompanhá-la à saída…Ela diz que a sorte dela é encontrar pessoas simpáticas…

Lá atrás a avó forte e a neta já estão mais pacificadas, avó está a ensiná-la a a soletrar.

Aqui a minha senhora, diz que para tudo é preciso prática…

A senhora lá atrás diz que a neta já devia ter levado na cara…Até lhe está a dizer agora que lhe parte a boca…não sei lá o que a miúda lhe está a dizer…o que vale é que estes miúdos Índigo não têm medo nem de avós, nem de pais, nem de ninguém...vêm quebrar as regras, as estruturas, desafiar, confrontar, para provocar a mudança…abençoados!...embora nos dêem cabo da cabeça…

A senhora diz à neta: “Porra!” Shiu!”comecei-me a rir e a minha senhora do lado olhou para mim…pois...não sabe do que me estou a rir…

Tal como da ultima vez, hoje também vai um senhor a olhar fixamente para mim…e quando eu olho ele desvia o olhar. Deve estar a estranhar o que eu tanto escrevo.
Falo e escrevo. Ele deve estar a reparar.

A senhora aqui atrás está a explicar à amiga Teresa como agora o telemóvel dela é moche e o transtorno que isso lhe tem causado…manda beijinhos ao Marco que apareceu lá de surpresa.

Arranjei uma parceira de saída para a minha senhora do lado …que fica muito aliviada. Já está junto à porta. Com 5 pessoas à frente e umas 10 atrás. Está segura.

O senhor que olha para mim agora está a disfarçar e a olhar de lado…deve achar
estranho as amizades que passam por aqui e como me rio sozinha…devo-lhe parecer completamente maluca.

Senta-se agora um senhor ao meu lado. Já é o quarto pareceiro de viagem. Tranquilo. Tão tranquilo que passarm 5 minutos e já está a dormir. Eu acho que o tal senhor está mesmo muito intrigado comigo… Vou fazer um teste. Vou parar de escrever, e pôr os phones e fechar os olhos…bingo! Acabou por adormecer também. Sem querer, estou a olhar pela vida dele…

De vez em quando tiro um dos auriculares para ouvir o que se passa e ver se estou a perder alguma coisa…a que ponto chegou isto de escrever sobre o comboio…

Interrogo-me se o volume no máximo incomodará o meu vizinho mas ele nem se mexe e concluo que o único risco é estoirar com os meus tímpanos…

Chego ao Porto! Ai o Douro! A Ribeira!...Que lindo, lindo... Afinal o Porto também é tão lindo…

Porque é que resisto a largar uma coisa quando há outra bonita há nossa espera?...E eu que já perdi tanta coisa…e que até já aprendi que nunca se perde…

Na estação vejo os casais que se reencontram…adoro ver esses abraços e beijos apaixonados…e há tempos a Vida, que de vez em quando me dá uma prenda, fez-me essa surpresa…mesmo quando menos esperava…

No carro do meu Pai vai a dar os Guns, que “por acaso” vinha a ouvir no comboio…

Chego a Rebordosa, a esta terra grotesca…e pergunto-me o que estou aqui a fazer…sinto que não tenho nada a ver com isto…mas quando chego a casa que parece um pequeno paraíso isolado…e abraço o meu filho e a minha mãe…e almoço no jardim…e me deito na caminha de jardim e adormeço ao sol…ai que calor...dia abençoado…

6 comentários:

Lurdes disse...

Está muito real. Lindo.
bj

Lurdes disse...

Como continuo a seguir as tuas histórias, e já sabes que gosto imenso. Um amigo especial ontem revelou-me também muito em "segredo" o blog dele, que vive no anonimato. Estou-lhe muito grata, porque é muito especial. E quero partilhar contigo esse texto e outro... Que te entregarei mais tarde. E vais gostar tenho a certeza :)
"Não é a voz que dirige a história, mas sim o ouvido."
"Aquilo a que a terminologia romântica chama génio ou inspiração não é mais do que encontrar empiricamente o caminho, seguir o próprio olfacto, tomar atalhos."
"A fé é uma visão das coisas que não se vêem."
"A arte de escrever histórias consiste em conseguir retirar do pouco que se compreendeu da vida tudo o resto; porém, acabada a página, a vida renova-se e damo-nos conta de que o que sabíamos era muito pouco."
"Escrever é sempre esconder algo de modo que mais tarde seja descoberto."
[Italo Calvino]
Um abraço
Lurdes

Olinda Cristina disse...

Obrigada Ludes! Estou sensibilizada com toda esta partilha, com todo este revelar...à medida que nos vamos expondo também nos vamos descobrindo...A Vida é mágica! Sempre, obrigada!E parabéns também ao teu amigo!

graca.ribeiro disse...

Olinda querida,
Fazes-me chorar. Identifico-me com a tua sensibilidade e quase choro quando choras!.
A tua conversa com a Laura ainda me fez mais nostalgica. Toda essa vivência em Moçambique, minha terra natal, onde passei a parte principal da minha vida antes da idade adulta.
Passei muitas férias no mato, convivendo com as gentes da terra, aspirando aquele ar perfumado que só existe em África....
Adorava ir lá agora, não para a cidade, mas para junto de gente que vive a sua vida simples e, como diz a Laura, feliz!. A magia africana que penetra em nós para sempre!.
Ah, já agora, não é importante porque eu percebi, mas há dois nomes errados: não é Mazaruto, mas sim Bazaruto (o local mais perfeito que encontrei até hoje)..Ar, mar calmo e limpido..peixinhos, corais...só Deus poderia ter feito a natureza assim!
O outro é Magaruque (não me lembro o nome correcto, depois informo).
Aqui fica o meu testemunho e ao mesmo tempo o agradecimento pela tua partilha, por me teres feito diferentemente feliz por momentos.
Bem hajas...Um abraço na luz.

Olinda Cristina disse...

Graça, para quem diz que tem dificuladade em escrever sobre emoções...expressas-te de uma forma linda!... Vi agora o vídeo que publicaste sobre Bazaruto e fiquei encantadíssima!!! Que lugar paradisíaco...Parece que África tem mesmo uma magia única...Muito obrigada e outro abraço na luz.

graca.ribeiro disse...

Obrigada pelo teu incentivo. Tenho sempre a impressão de que não me sei expressar e que as outras pessoas não me entendem.
Fica bem e sempre na luz.